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O acolhimento de menores não acompanhados nas Ilhas Canárias: “O Estado tem de reagir”.

Já passou um ano desde que Hakim embarcou num barco para a Gran Canaria. Aos 16 anos, deixou Marrocos numa barcaça de madeira em busca de um bom futuro. A viagem durou quatro dias. Havia mais 50 pessoas no barco, mas ele estava sozinho. A sua família ficou em Marraquexe. Com um sorriso tímido, diz que na sua terra natal era carpinteiro. Com o pouco dinheiro que ganhava e o salário do pai, que trabalhava como barbeiro, os dois e a mãe, que trabalhava em casa, conseguiam fazer face às despesas.

Hakim é um dos 5.065 menores não acompanhados que estão sob a tutela do governo das Ilhas Canárias, na sequência do aumento das chegadas de migrantes nos últimos meses. Um aumento que voltou a pôr à prova o sistema de acolhimento no arquipélago e reabriu a questão não resolvida da distribuição do acolhimento de menores que chegam às ilhas para o resto de Espanha, algo que o governo regional tem vindo a exigir desde a emergência humanitária de 2020.

A maioria dos migrantes que entraram em Espanha no ano passado fizeram-no através das Ilhas Canárias. O arquipélago bateu o seu recorde de chegadas, com o salvamento de 39.910 sobreviventes. A presença de crianças e adolescentes na rota atlântica também aumentou em 2023, uma tendência que se mantém em janeiro deste ano. “As chegadas são já uma constante. Não passa um mês sem que cheguem crianças. Só na primeira quinzena de janeiro, chegaram cerca de 49”, explica o vice-ministro do Bem-Estar Social do Governo das Canárias, Francisco Candil. Perante esta situação, o presidente das Canárias, Fernando Clavijo, solicitou na semana passada ao governo central a realização de uma “distribuição obrigatória” pelas outras comunidades autónomas, com uma repartição baseada em critérios de PIB per capita, população ou superfície.

Segundo Candil, o facto de um único território acolher crianças em períodos de retoma pode resultar na violação dos direitos das crianças. “Nas Ilhas Canárias, houve alturas em que nem sequer havia beliches. Tivemos de fazer tudo o que estava ao nosso alcance para responder às chegadas”, afirma. Em outubro de 2023, o Ministério dos Direitos Sociais e a Agenda 2030 acordaram, no âmbito da Conferência Sectorial sobre a Infância e a Adolescência, a distribuição de 347 menores que chegam às Ilhas Canárias para o continente. Apesar deste pacto, desde junho até à data, não se verificou qualquer encaminhamento para outras comunidades, segundo fontes do governo das Canárias.

Testes de determinação da idade

Nos últimos dias, três crianças de dez anos chegaram ao centro de Tenerife onde Hakim vive. As suas fotografias coroam o seu quarto, decorado com peluches e jogos. “Os perfis mudaram. Estão a chegar crianças cada vez mais novas”, afirma a directora do centro, Patricia Lago. A fixação da idade dos menores foi um dos elementos que agravaram a crise no arquipélago.

Durante a emergência de 2020, o estrangulamento do teste de idade obrigou as crianças a viver com adultos de até 40 anos nos mesmos centros. Atualmente, dos 5.065 menores sob a tutela das Canárias, pelo menos 1.000 aguardam um teste para determinar a sua idade, segundo o Vice-Ministério. Por seu lado, Teseida García, procuradora de estrangeiros da província de Las Palmas, afirma que as coisas estão a funcionar melhor do que há três anos. “As listas de espera que temos são normais, tendo em conta o número de pessoas que temos”, explica.

O Ministério Público dispõe de pessoal reforçado e orgulha-se de uma boa coordenação com as ONG, a Polícia Nacional e o Instituto de Medicina Legal. Para García, o empenho nas primeiras revisões é fundamental: “Não aceito que me tragam um dossier sobre um menor evidente, ou sobre um homem que se vê logo que é mais velho”.

Por vezes, são as próprias entidades responsáveis pelos centros de adultos que detectam a presença de menores nas instalações. “Nestes casos, demoramos mais tempo porque temos de avaliar a documentação que têm”, diz García. “Telefonamos sempre aos menores, ouvimo-los e perguntamos-lhes sobre estes documentos. Avaliamos até as fotografias que enviam para os seus telemóveis. A prova médica é sempre a última opção”, acrescenta. A fiabilidade destes testes foi posta em causa por várias organizações de crianças, uma vez que utilizam padrões de crianças americanas e não africanas.

García recorda que o decreto de determinação da idade é “provisório”. “O problema que a comunidade autónoma vai enfrentar será a revisão dos decretos. Quando estas crianças começarem a apresentar documentos, os decretos terão de ser reabertos e todas as provas terão de ser avaliadas”, sublinha o procurador. O procurador para os estrangeiros é igualmente favorável a uma aceleração das transferências para o continente, mas insiste na importância de determinar a idade de todos os menores que se encontram nas Ilhas Canárias antes de os transferir. “Caso contrário, seria uma catástrofe. Se os enviarmos sem uma certa idade, perdem toda a proteção porque os perdemos de vista”, afirma.

O desafio da inclusão

Para o procurador para os estrangeiros, o bloqueio de todos os jovens nas Ilhas Canárias é contrário ao interesse superior da criança. “O facto de o arquipélago ter de cuidar e formar 5.000 menores significa que estes têm menos oportunidades do que os de qualquer outra cidade com menos crianças a cargo”, afirma. O ministro-adjunto da Segurança Social também segue esta linha: “O Estado deve reagir. Não se trata apenas de lhes dar um teto e comida, mas também escola, cuidados de saúde e integração”.

Ao lado de Hakim, na sala de jantar do centro de acolhimento, está Seidou. Nasceu na região de Fatick, no Senegal, e chegou a Tenerife em 2019 num cayuco com mais de uma centena de pessoas. Tinha 12 anos na altura e não sabia para onde ia. Nunca tinha ouvido falar das Ilhas Canárias, apenas de Madrid ou Barcelona. Com um forte sotaque das Canárias, recorda a sua viagem: “Durou uma semana e dois dias. Um outro rapaz e eu éramos os únicos que tinham comida no barco, porque éramos os mais pequenos”. Ele e Hakim têm agora 17 anos e encontraram no futebol, nos amigos, no amor e na música a chave para a sua inclusão. “Os nossos cantores preferidos são Anuel e Morad”, riem-se.

Patricia Lago, educadora social e directora de um dos centros de acolhimento do arquipélago, afirma que as Canárias têm um sistema de acolhimento “muito poderoso”. “Antes, o sistema era mais assistencialista. Atualmente, os educadores actuam como guias e tentam fazer com que as crianças sejam protagonistas das suas próprias vidas”, defende. Segundo o educador, as ilhas têm em conta as necessidades dos jovens, a sua cultura e as suas emoções. “Deixámos de ser cães de guarda e passámos a dar-lhes as ferramentas para tomarem as suas próprias decisões”, afirma.

O contacto com as famílias em casa é fundamental. Hakim, Seidou e os seus companheiros de centro falam com os seus entes queridos por videochamada todos os dias. “Dá-lhes muita paz de espírito. Também dá às suas famílias e a nós, educadores. Eles apoiam as crianças a partir daí e nós vamos na mesma direção”, diz Patricia Lago.

Para o educador, um dos desafios pendentes do sistema está na formação profissional. “Por vezes, é-lhes exigido o cumprimento de requisitos burocráticos que só as pessoas nascidas cá podem ter, como por exemplo, ter o SSE”, diz. Em contrapartida, as Ilhas Canárias conseguiram escolarizar as crianças mais pequenas. “As crianças de dez anos chegaram há algumas semanas e já estão na escola”, comemora.

O Departamento dos Direitos Sociais garante que uma das principais linhas de trabalho em curso é a formação de menores em actividades laborais difíceis de encontrar, especialmente no sector primário, no sector dos serviços e na construção. O objetivo é permitir-lhes arranjar um emprego quando fizerem 18 anos.

Extraleves

Outro objetivo do Governo das Ilhas Canárias é que todos os migrantes tenham a sua documentação antes de atingirem a maioridade. Nesta altura, encontram pouca cooperação por parte dos consulados dos países de origem. “Imagino que seja devido à complexidade da obtenção dos documentos”, acrescenta Francisco Candil.

Vania Oliveros, advogada especializada em imigração e assuntos de menores, diz que ela e os seus colegas são confrontados com “duas realidades”. Embora a administração garanta que todos os migrantes partem com documentação, no seu dia a dia verificam que “não é esse o caso”. “Compreendemos que há um grande número de barcos, mas o problema é que o número de profissionais na administração continua a ser o mesmo”, afirma. A principal consequência: muitos jovens deixam o sistema numa situação administrativa irregular.

Nestes casos, são os advogados colaboradores e as organizações civis que se encarregam de ajudar os ex-reclusos a tratar de toda a documentação necessária para obter a residência. “Os direitos das crianças e dos jovens são violados porque o sistema não está dotado de recursos humanos e estruturais. Num território que está sempre a receber migrantes, continuamos a recorrer à improvisação”, critica Oliveros.

Para o advogado, não basta dotar uma entidade de um orçamento para cobrir as necessidades básicas das crianças. “Os direitos das crianças não estão a ser tratados como deviam”, afirma. Entre as principais deficiências está a falta de especialização no sector e a falta de uma atenção personalizada que tenha em conta a vulnerabilidade especial dos menores migrantes.

À margem do sistema de acolhimento

O sistema nas Ilhas Canárias também mostrou as suas deficiências nos últimos meses. Em 24 de novembro, 20 menores fugiram de um centro de acolhimento na Gran Canaria e denunciaram aos tribunais agressões físicas, humilhações e abusos sexuais. Oito deles regressaram ao centro algumas horas mais tarde, mas os outros passaram até cinco noites na rua até que o governo das Ilhas Canárias os recolocou noutros espaços. Na altura, o Governo Regional justificou que os técnicos enviados para inspecionar o centro não tinham podido confirmar os factos relatados.

O dispositivo de onde fugiram é gerido pela Fundación Respuesta Social Siglo XXI, que já esteve envolvida noutros escândalos nas Ilhas Canárias. Quatro dos seus directores estão a ser investigados por desvio de fundos públicos, depois de o Ministério Público ter alegado que utilizaram o dinheiro destinado aos menores para tratamentos de beleza pessoais, chinelos, hotéis de luxo e Viagra.

Moha é outro dos menores que, apesar de ter chegado sozinho a Lanzarote, está fora do sistema de acolhimento. O seu caso é ainda mais grave. Quando chegou às Ilhas Canárias, foi detido, acusado de ser o capitão do zodíaco em que viajava. Apesar de ser menor de idade, passou três meses na prisão de Tahíche. “Estive lá até o meu advogado obter a minha certidão de nascimento”, conta. Moha chegou com 15 anos, mas o facto de saber que podia ir para um centro juvenil levou-o a dizer que era quatro anos mais velho. “Eu só queria trabalhar e mandar dinheiro para casa”, diz ela agora.

Alguns dos seus companheiros de viagem apontaram-no como o capitão do bote, o que foi suficiente para o prender. A sua advogada, Sara Rodríguez, diz que se dirigiu ao Tribunal Superior de Justiça das Canárias (TSJC) com uma certidão de nascimento e um relatório de determinação da idade que dizia que a faixa etária mínima era de 16 anos. Mesmo assim, o Tribunal concluiu que devia ser julgado como adulto porque, à chegada, se declarou adulto. O caso está agora a ser apreciado pelo Supremo Tribunal. Entretanto, Moha está a viver com um familiar em Tenerife, embora, segundo fontes judiciais, devesse estar num centro de acolhimento gerido pelo governo regional. “Ainda bem que o tenho. Caso contrário, estaria na rua”, diz.

*Os nomes das crianças no relatório são fictícios para proteger a sua identidade.

**Este relatório foi elaborado em colaboração com Canarias Ahora.

Escrito por Natalia G. Vargas


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