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Os russos puseram-se à vontade, os georgianos não os querem

A festa de sexo começou às vinte e duas horas de sábado. A anfitriã, Masha, mostra-me o seu apartamento no prestigiado bairro Wake de Tbilisi. Os quartos do andar de cima foram equipados com “trachodromes”, livremente traduzidos como “salas de movimento”, onde só se pode entrar nu. Decorada em estilo escandinavo, a sala de estar com cozinha serve como uma sala de familiarização onde podes desfrutar de uma bebida, sushi ou algo da tábua de snacks preparada por uma simpática loja russa. Os alimentos são escassos, uma vez que os correios indianos da Glovo estão a fazer entregas hoje com um atraso considerável.

De Moscovo, Moscovo, Moscovo, Podmoskovia e São Petersburgo – aprende com os pequenos talkies. Os participantes no evento são russos que se estabeleceram na Geórgia após o início de uma guerra em grande escala na Ucrânia. Predominam os casais heterossexuais, quase todos em fatos de treino, porque o código de vestuário da parte têxtil do evento é ” comfy chic“. Estão na casa dos 30 e 40 anos, mas o rosto de muitas mulheres já mostra sinais de intervenção de um cirurgião plástico.

Partiram porque não querem viver na Rússia de Putin. Nem sequer se tratava de mobilização – a classe média alta metropolitana não é particularmente vulnerável a ela. Antes da guerra, não se interessavam pela política e queriam manter-se assim. Só Masha fala do seu envolvimento social: à tarde, toma conta dos filhos de outras mães russas. Ela própria não tem filhos e não trabalha. O marido dela é programador.

Não tinham muitos países por onde escolher: para além da Geórgia, tinham ainda a Arménia, o Cazaquistão, a Turquia e a Tailândia, por exemplo. Não têm acesso à União. Podem ficar na Geórgia durante um ano sem visto e depois sair por algumas horas e regressar. Tbilisi é uma cidade europeia, podes entender-te em russo e tem um clima favorável, pois os Outonos são longos e quentes.

Os georgianos, garante Masha, ainda não se depararam com nada de desagradável até agora. No entanto, com os “sextuplets” é melhor teres cuidado, porque são pessoas muito conservadoras. Os convites são enviados através de canais de confiança e as janelas de todo o apartamento são mantidas fechadas durante toda a noite. “É melhor que ninguém ouça nada”.

Ri-me no espírito porque esta frase parece-me ambígua. Se abrisses a janela, o barulho de uma manifestação – vuvuzelas, apitos, brindes à Geórgia – chegaria ao apartamento de Masha de longe. Cerca de 300.000 pessoas saíram às ruas de Tbilisi nessa noite, descendo à Praça da Europa vindas dos quatro cantos do mundo, bloqueando metade da cidade. Os protestos já se arrastam há semanas, desencadeados pela chamada “Lei dos Agentes Estrangeiros“, que visa a sociedade civil e os meios de comunicação social. É construído segundo o modelo russo, que não agrada aos manifestantes. Exige que a Geórgia siga o caminho europeu.

Mapa russo de Tbilisi

Dos mais de um milhão de russos que entraram na Geórgia entre março e novembro de 2022, dezenas de milhares permanecem até hoje. Aqueles que fugiram cegamente antes da mobilização já tinham, na sua maioria, regressado à Rússia. Os que podem pagar ficam. O russo estatístico da Geórgia é um milenarista e trabalha remotamente no sector das TI. É muito provável que já tenha tido a experiência de trabalhar à distância a partir de Chipre ou de Bali.

Os russos criaram o seu mapa de Tbilisi: bares de língua russa, espaços de coworking, escolas. Deram à cidade um toque escandinavo, que está na moda em Moscovo e São Petersburgo. Debruça-se sobre computadores portáteis em cafés estéreis e minimalistas. E, depois do trabalho, com a ajuda do Telegram, reúnem-se para praticar ioga em russo, fazer perguntas em bares ou fazer stand-up.

– Os russos e os georgianos vivem em dois mundos separados em Tbilisi”, explica-me Elene Khachapuridze, uma jornalista georgiana. – É difícil falar de qualquer integração. Parecia-lhes que vinham aqui como se nós os fôssemos visitar, que íamos dançar, cantar para eles e oferecer-lhes chachapuri. Perceberam mal.

A atitude dos georgianos em relação aos seus antigos colonizadores é bastante complicada. As gerações mais velhas recordam a URSS com nostalgia e os turistas russos sempre foram muito bem-vindos. No entanto, a guerra de 2008 deixou uma marca duradoura na memória colectiva. Esta ferida foi agravada pela invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia.

Atualmente, apenas 19% dos Os russos inquiridos pela equipa de investigação do Exodus22 consideram os georgianos amigáveis. Noutro inquérito, apenas 4 por cento. Os georgianos admitem que se congratulam com a chegada dos russos.

As emoções da guerra são uma coisa – e são provavelmente mais fortes do que na Polónia. Tbilisi está a afogar-se em bandeiras ucranianas e graffitis anti-russos como: “Ruzzianos vão para casa”. À medida que os russos se mudavam para a capital da Geórgia, o Facebook georgiano fervilhava com gabarolices sobre quem tinha alugado um apartamento a um russo mais caro e quem não tinha alugado nada. Os georgianos também andavam a sondar os russos em grupos para expatriados. – Onde podes comer ostras frescas? – Em Mariupol!

A altercação televisionada online entre a celebridade russa Kseniya Sobchak e o proprietário do bar Deda Ena fez história. Ela falava russo, ele respondia em inglês. Após o início de uma guerra em grande escala, o bar começou a emitir vistos para os russos, que estavam condicionados à assinatura de um formulário: “A Crimeia é a Ucrânia”, “Putin é um ditador”, “Fama para a Ucrânia”, etc. “Se introduzisses esses vistos para os judeus na Alemanha, prendiam-te no dia seguinte. Seria considerado nazismo”, argumentou Sobczak.

– No início, os russos nem sequer perguntavam se sabíamos russo, apenas se dirigiam a nós na sua língua”, recorda Elene Khachapuridze. – Isto irritou sobretudo os jovens, uma vez que os millenials georgianos já têm um fraco conhecimento do russo e os Zetas não o falam de todo. No entanto, tenho a impressão de que os russos se acalmaram um pouco depois do protesto contra o navio russo em Batumi.

No verão de 2023, o navio de cruzeiro russo Astoria Grande fez escala no porto de Batumi, no Mar Negro. Entre os que estavam a bordo encontravam-se. celebridades e jornalistas que apoiam as chamadas “redes sociais”. operação de especulação na Ucrânia. Os georgianos receberam-no com bandeiras da União e com o slogan, agora clássico, sobre a guerra russa korabl. Os protestos foram tão violentos que o navio de cruzeiro deixou o porto dois dias antes do previsto.

A chegada dos russos provocou também um aumento brutal dos preços, nomeadamente no mercado imobiliário. – Antes da guerra, um apartamento de duas assoalhadas em Tbilisi custava 50.000 euros. USD, hoje tens de depositar 100.000. – explica Khachapuridze. – O preço das rendas triplicou. Os estudantes regressaram à cidade após a pandemia e descobriram que não tinham dinheiro para pagar a habitação. Há cada vez mais pessoas a mudarem-se para Rustavi [uma cidade perto de Tbilisi – nota do autor] e a deslocarem-se para a capital de marshrutka.

Os russos transferiram as suas empresas para a Geórgia, mas o país não beneficia muito com a sua regulamentação liberal – os impostos são muito baixos, especialmente para as empresas unipessoais típicas do sector das TI. O PIB do país está orgulhosamente a crescer, mas os seus habitantes não o sentem, se não contares com os proprietários ou alguns comerciantes. A Geórgia, que depende da Rússia e do turismo, está a passar muito mal devido à pandemia e à guerra na Ucrânia. Os salários estão estagnados, a inflação é galopante, os preços nos bares são de Varsóvia.

O que chamas ao processo de colonização russa em Tbilissi? Elene diz que se trata sobretudo de gentrificação. Giorgi Badridze, analista da Fundação Georgiana de Estudos Estratégicos e Internacionais, chama-lhe neocolonização. “É um caso muito invulgar, porque não me lembro de nenhum outro caso em que os cidadãos de um país que está a ocupar outro país vão para lá como refugiados”. Dos russos, ouves mais frequentemente falar de “deslocalização”. Termo da linguagem empresarial, significa a deslocalização de um trabalhador para outro país. Não há como negar – “relocalizado” soa melhor do que “migrante”.

Basta seres russo

Claro que não é verdade que todos os russos se importem com os protestos na Geórgia. Para a festa de sexo organizada durante o tempo deles, eu forniquei-me para fins retóricos. A investigação da OutRush mostra que a grande maioria dos “recolocadores” deixou a Rússia devido a “desacordo político e moral com as acções do governo russo”. Normalmente, são pessoas com um bom nível de educação, oriundas das grandes cidades. Para além dos “ajtishis”, muitos deles são activistas, artistas, académicos (o que, aliás, explica por que razão esta diáspora é tão investigada). Muitos têm opiniões progressistas, alguns participam em protestos na Geórgia.

Por exemplo, Sasha Sofeyev, que na Rússia foi fotógrafo e ativista das Pussy Riot. Foi preso pela primeira vez em 2020 por pendurar uma bandeira arco-íris na Lubianka, a sede do FSB. Depois, mais três vezes, até que finalmente se fartou. Decidiu-se pela Geórgia porque, diz ele, sabia que os georgianos não apoiavam Putin, pelo que pensou que se sentiria confortável aqui. Isto ainda antes da guerra.

No dia 24 de fevereiro, estava feliz por estar em Tbilisi porque não queria ver nada a não ser bandeiras ucranianas. Ele e os seus amigos começaram a angariar dinheiro para ajudar a evacuar os ucranianos. Depois, durante um ano, dirigiu um centro para refugiados ucranianos. Trabalha atualmente na Frame, uma organização de activistas russos na Geórgia. Na sua opinião, todos os russos que têm dinheiro, força e tempo devem envolver-se na ajuda aos países que sofrem com o regime russo.

– Não consigo conter as lágrimas quando vejo como os georgianos valorizam a sua liberdade e estão dispostos a lutar por ela”, diz Sasha. – Podiam ensinar o mundo inteiro a protestar. Na Rússia, por outro lado, tudo o que sentia era medo e ansiedade constante por a sociedade não concordar comigo.

Stasia Bielenko, uma designer e ativista de 20 anos de Moscovo, também vai aos protestos. Quando a sua cidade se enchia de letras “Z” sinistras e de cartazes a apelar à defesa da pátria, considerava-se meio ucraniana – afinal, tinha crescido com a avó na Crimeia. Tornou-se ativa no Movimento Feminista Anti-Guerra e distribuiu autocolantes “não à guerra” por Moscovo. Os protestos contra a guerra foram uma experiência dolorosa para ela.

– Havia mil, no máximo duas mil pessoas a sair à rua”, explica Stasia. – Eles estavam a transformar toda a gente numa cabra com facilidade.

Em setembro de 2022, foi detida durante sete dias. Foi um protesto contra a mobilização. No total, reclamaram quinze raparigas, a maioria das quais intelectuais. Os polícias trataram-nos muito bem, não lhes cortaram a água quente, embora teoricamente devessem ter acesso a ela uma vez por semana. Perguntavam quem lhes pagava. Não podiam acreditar que estavam a protestar contra as autoridades por sua própria vontade.

Na prisão, apaixonou-se por uma rapariga e seguiu-a até à Geórgia. A outra regressou a Moscovo uma semana depois porque tinha arranjado um namorado, mas Stasia decidiu ficar em Tbilisi. Adora esta cidade porque aqui pode ter o aspeto que quiser – usar piercings, tatuagens, calças rasgadas – e ninguém presta atenção. Trabalha remotamente para iniciativas de esquerda na Rússia – fazendo merchandising para o grupo lésbico Cheersqueers e co-criando uma aplicação para ajudar as mulheres a evitar situações perigosas nas ruas.

Por vezes, aparece nos protestos na Geórgia – mas apenas como aliada, não apresenta quaisquer exigências. Como me explica, ao contrário dos ucranianos e dos bielorrussos, os russos não estão autorizados a aparecer nos protestos georgianos com a sua bandeira, mesmo a alternativa branco-azul-branco. Numa manifestação, ficou triste ao ouvir os georgianos gritarem a palavra de ordem: “Que se lixem as mães russas!”.

– A opinião dominante entre os russos é que não nos devemos envolver na política da Geórgia, porque só irritamos os georgianos com isso”, explica-me Katya Chigaleichik, antropóloga social da equipa Exodus22. – Organizámos protestos contra a guerra em 2022, mas muitos consideraram-nos inúteis. Qual é o objetivo de gritar que o Putin é um idiota? A quem é que estamos realmente a gritar que somos contra a guerra? Tanto mais que os georgianos olharam para tudo isto de forma crítica.

– Deixa-os ir para a Rússia e gritar tudo lá”, é o que me dizem os georgianos. – Beneficiar-nos-ia a todos.

Pergunto aos meus interlocutores como é que na Rússia a violência do aparelho de poder inspira medo, enquanto na Geórgia inspira mobilização. Protestos contra o chamado A Lei dos Agentes Estrangeiros continua, apesar das detenções, do gás pimenta, das balas de borracha e dos canhões.

Sasha acredita que, após o colapso da União Soviética, alguns países – como a Geórgia e a Ucrânia – desenvolveram a sua identidade nacional em oposição ao antigo colonizador. Na Rússia, não surgiu uma nova identidade; em vez disso, foram ressuscitados os fantasmas do passado soviético e imperial. – Moscovo não tentou libertar-se.

Stasia pensa que a dimensão do país é importante: – Mesmo que muitas pessoas se manifestassem em Moscovo, isso não mudaria nada a nível nacional.

Observa que os laços familiares e de amizade são muito mais fortes na Geórgia do que na Rússia. – A Rússia é um país atomizado, cujos cidadãos se sentem como ninguém, diz ele.

Katya acredita que os russos, ao contrário dos georgianos ou dos ucranianos, não conhecem uma luta que possa terminar em sucesso. Em vez disso, a crença, desenvolvida na União Soviética, de que é melhor manter o silêncio continua viva.

Geórgia rumo à democracia, Rússia nas garras do Putinismo

Quando regressei da Geórgia, coloquei a mesma questão a Sergei Medvedev, autor do livro War “Made in Russia”, que acaba de ser publicado pela Krytyka Polityczna. Responde que a Rússia moderna é um país totalitário e que os russos não se podem rebelar contra Putin, como não era possível sob Estaline ou o Terceiro Reich. Este é um argumento forte, mas não me convence totalmente. Os milhares de presos políticos são insignificantes face aos milhões de vítimas do Grande Terror.

No entanto, é verdade que a Geórgia, após o colapso da URSS em 1991, se tornou um país democrático em comparação com a Rússia. Nunca foi perfeito – a transferência pacífica de poder só foi bem sucedida uma vez desde então, e em todas as eleições ouvimos falar de irregularidades no estilo da compra de votos ou de funcionários do orçamento que são “encorajados” a carimbar o candidato certo. No entanto, enquanto a Rússia entrava em fases sucessivas de Putinismo, a Geórgia estava a construir uma sociedade civil forte e meios de comunicação social independentes, implementando reformas democráticas mais ou menos bem sucedidas, e sucessivas gerações com opiniões pró-ocidentais estavam a crescer. Hoje, todo este legado está em jogo.

O governo da Geórgia persistiu – o chamado A Lei dos Agentes Estrangeiros vai entrar em vigor e já está. Segundo consta, é necessária para defender a Geórgia de um “partido de guerra global” que quer arrastar o país para um conflito com a Rússia. Financiados pelo Ocidente podre, os inimigos da nação serão castigados. Por enquanto, são silenciados com métodos conhecidos da Rússia – espancados por autores desconhecidos, intimidados e difamados publicamente.

Nunca antes se tinha visto isto na Geórgia. Há anos que o governo se debate entre a UE e a Rússia, mas não chegou a este ponto. Ouve também a sociedade civil. Os protestos contra a influência russa têm-se arrastado desde 2019, os manifestantes conseguiram sempre ganhar alguma coisa. Há muitos indícios de que a decisão de devolver a Geórgia ao seio da “Russky mira” foi tomada pelo Kremlin. E o Ocidente, preocupado com os seus próprios problemas, não mexerá um dedo nesta questão.

Há ainda a possibilidade de os manifestantes transformarem a sua energia sem precedentes (300.000 pessoas no protesto é quase 10% da população da Geórgia) em poder político e vencerem o governo pró-russo nas eleições parlamentares de outubro. No entanto, pode já ser demasiado tarde para isso, e a Geórgia enfrenta muitos anos como vassalo russo amordaçado.

Os meios de comunicação social e as ONG georgianas conhecidas não têm qualquer intenção de cumprir a nova lei. Não se inscreverão no registo de “agentes estrangeiros”, virão encerrar a sua atividade ou transferi-la para o estrangeiro. Por agora, tencionam continuar a lutar nas ruas.

E como é que os russos abordam esta questão?

Sasha está a tentar obter um visto humanitário que lhe permita mudar-se para a Polónia. Os seus amigos já receberam telefonemas ameaçadores e um russo foi detido e espancado após o protesto. Entristece-o ver “como tiram o futuro a pessoas tão maravilhosas”.

Stasia também está a pensar em partir, mas por razões formais – o estatuto migratório pouco claro na Geórgia não lhe permite planear o futuro. Gostaria de viver num país onde a polícia não a prendesse por ter uma opinião. Seria ótimo viver em França. Como artista, tem a possibilidade de obter um “visto para talentos internacionais”.

Katya vai continuar o seu trabalho com o estigma de “agente estrangeira”. Não é novidade para ela: a organização com que trabalhou na Rússia tinha este estatuto desde 2015. Com o tempo, foram surgindo outras restrições até que, finalmente, as suas actividades foram paralisadas. – Vamos continuar a trabalhar. Que mais poderíamos fazer? – pergunta retoricamente.

Também perguntei sobre os protestos e a “russificação” da Geórgia na festa do sexo. Responderam-me com sorrisos evasivos e alguém se queixou de que era melhor não te envolveres nos assuntos locais. Apenas uma rapariga com a cabeça em rastas foi depor. – Preferia que a Geórgia não entrasse na União. Se isso acontecer, seremos todos expulsos daqui.

Kaja Puto

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O nome de uma das personagens foi alterado.

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